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segunda-feira, 31 de agosto de 2020

ALGUNS TEMAS E REFLEXÕES SOBRE A EPOPEIA DE GILGAMESH


Considerada a primeira obra literária da História, a Epopeia de Gilgamesh mostra que as questões fundamentais da existência humana – felicidade, amor, sexo, amizade, poder, o sentido da vida, a certeza da morte e as incertezas do destino – acompanham o homem há milhares de anos.

Gilgamesh é o modelo de herói, com virtudes e defeitos humanos, que se arrisca ao novo, desconhecido e extraordinário e, com isso provoca profundas mudanças. A jornada do herói é a da transformação interior.

No início do poema, a exaltação a Gilgamesh diz respeito à pessoa que ele se tornou ao final de sua jornada – “o sábio que viu os mistérios e conheceu coisas secretas”. A arrogância, truculência e luxúria de Gilgamesh são contestadas pelo seu povo. O governante pode tudo? Não, e os habitante de Uruk reclamam aos deuses. Entendem que o líder deveria trabalhar pela harmonia da sociedade (“ser um pastor para seu povo”) e não provocar a discórdia. Clamam por justiça e fim da opressão. Um interessante ponto de partida para refletir sobre a diferença de autocracia e tirania.

Enkidu surge para desafiar Gilgamesh. A criação de Enkidu traz elementos intrigantes. Ele é criado pela deusa Aruru a partir do barro – diferente da tradição hebraico-judaica que se refere a um deus criador masculino. Enkidu, como Adão, vive entre os animais e em harmonia com eles. Quem vai mudar esse cenário é uma mulher, a cortesã sagrada Shamhat. O papel de Shamhat é crucial: ela usa sua beleza e sedução para atrair o selvagem Enkidu e, através de relações sexuais contínuas, ensinar-lhe os fundamentos da vida civilizada, a comer alimentos elaborados, beber vinho, vestir-se e se expressar através da música e do canto. Shamhat cujo nome significa “a alegre”, é quem introduz Enkidu à vida em sociedade. As habilidades sexuais de Shamhat estabelecem a diferença entre o sexo para procriação – impulso próprio dos animais – e a sensualidade artística e sofisticada própria da civilização. Os mesopotâmicos entendiam a prostituição como uma das características básicas da vida urbana e civilizada. Daí entender o papel de Shamhat: apresentar para Enkidu o mundo sedutor mas complexo da cultura humana. Quando Enkidu está morrendo, ele expressa sua raiva contra Shamhat por tê-lo tornado civilizado, culpando-a por trazê-lo para o novo mundo de experiências que o levou à morte. Ele a amaldiçoa. O deus Shamash, o Sol, intervém e lembra a Enkidu que Shamhat o alimentou e o vestiu. Enkidu cede e abençoa-a dizendo que todos os homens a desejarão e lhe oferecerão joias de presente. Depois de deitar-se com Shamhat seis dias e sete noites, Enkidu tentou voltar à sua vida selvagem, mas os animais fugiram dele. Assim como Adão ao provar o fruto do conhecimento oferecido por Eva foi expulso do paraíso, Enkidu não é mais o mesmo depois do aprendizado dado pela mulher. Rompeu-se a conexão do homem selvagem com o mundo natural. Os animais o rejeitaram e ele, então, deve ir para o lugar onde esse conhecimento pode ser usado, a cidade.

O encontro de Enkidu e Gilgamesh é outro momento chave da epopeia. Enkidu é o reflexo do rei: são iguais mas não idênticos. Têm a mesma força física e arrogância, mas diferentes experiências humanas. Enkidu não tem família, afinado com o mundo natural e selvagem. Gilgamesh tem pai e mãe (o poema faz constante menção a Ninsun, mãe do rei e a intérprete de seus sonhos), vive e governa uma grande cidade. Ambos heróis representam a polaridade entre natureza e cultura. Enkidu será o agente das mudanças de Gilgamesh. Inclusive na morte, Enkidu é um ponto de virada na jornada no rei. Enkidu, o selvagem, trará a Gilgamseh a oportunidade de se perceber humano, como todos os outros, e deixar de lado sua arrogância e sua recusa em aceitar o destino humano. A relação fraternal entre eles nasce de suas diferenças sobre as quais se equilibram, complementando-se e compensando que falta ao outro. Talvez esse seja o sentido mais profundo da luta inconclusa entre eles, sem vencedor e  vencido. Eles foram criados para equilibrar um ao outro, compensando o que falta no outro. A amizade de Gilgamesh e Enkidu se constrói na disputa, na escuta, na perda, no ganho, na cooperação, no ciúmes, na vaidade, na lealdade, na coragem, na agressividade e na amorosidade.

A psicologia analítica ou junguiana (iniciada por Carl Gustav Jung) vê Enkidu o irmão-sombra de Gilgamesh, sua “criança interior”, frágil e vulnerável (ou mesmo desprezada e humilhada). Para silenciá-la, o indivíduo desafia-se continuamente a provar sua grandeza, poder e força. Por trás desse comportamento está a sociedade patriarcal, com suas imposições de sucesso e desempenho, seu desprezo pelos semelhantes, pela mulher, pelos animais e pelo meio ambiente. Daí a arrogância, a intolerância, a vaidade desmedida e a intransigência. Há quem veja a relação fraternal entre Enkidu e Gilgamesh similar a de Aquiles e Pátroclo, na Ilíada de Homero, sugerindo um relacionamento romântico, homoafetivo. Não há na epopeia nada evidente que possa sustentar essa hipótese e, talvez, essas análises estejam dizendo mais de nossos parâmetros morais contemporâneos do que sobre os valores e mentalidade da História Antiga do Oriente Próximo.

Após aventuras e perigos, a epopeia aproxima-se de seu grande tema final: a busca da imortalidade. Cabe a uma mulher fornecer a chave do segredo a Gilgamesh: ela fala sobre a planta capaz de dar a eterna juventude a quem a comesse. De posse da planta, Gilgamesh tomado de compaixão (já não é mais o rei arrogante) decide levá-la a Uruk e dividi-la com os anciãos da cidade. Porém, uma serpente come a planta roubando a imortalidade do homem. Impossível não fazer uma analogia com a serpente do Gênesis que tirou a vida eterna de Adão e Eva e levou-os à expulsão do Éden. Chegando a Uruk, Gilgamesh comenta com o barqueiro que o acompanha sobre a beleza e imponência da cidade, feita de tijolos cozidos, com suas muralhas, templos e jardins. Os versos anunciam: “Tudo isso era obra de Gilgamesh, o rei que conheceu os países do mundo. Ele era o sábio, viu os mistérios e conheceu  as coisas secretas. Transmitiu-nos uma história dos dias antes do dilúvio. Fez uma longa jornada, conheceu o cansaço, esgotou-se em trabalhos e, ao regressar, gravou numa pedra toda a história.”

Essa era a imortalidade tão desejada por Gilgamesh: suas obras, a sabedoria alcançada e sua história transmitida às gerações futuras  – enfim, tudo o que realmente fica para a eternidade.


Profa. Joelza Ester Domingues



Fonte: Blog "Ensinar História"
https://ensinarhistoriajoelza.com.br/gilgamesh-a-historia-mais-antiga-do-mundo/



O SURGIMENTO DO HERÓI PESSOAL
Em síntese: Acredita-se que a mais antiga obra da grande literatura que sobreviveu até os dias de hoje é a Epopeia de Gilgamesh. Evoluiu a partir de uma série de poemas sumérios escritos há uns quatro mil anos, e é a história de um rei semidivino mas impiedoso que fica traumatizado pela morte de seu amigo guerreiro e se lança numa busca para descobrir a chave da vida eterna. Matando monstros, encontrando-se com deidades e consultando aos sábios do caminho, Gilgamesh finalmente experimenta uma redenção pessoal que o reconcilia com sua própria mortalidade e volta a seu povo como um rei mais sábio e mais benéfico.

Fonte: Escola Arcana



Fonte da Gravura: https://apaixonadosporhistoria.com.br/img/foto/galeria_1_1126168892.jpg

sábado, 17 de setembro de 2016

A CRÍTICA DE ZYGMUNT BAUMAN À PÓS-MODERNIDADE

Zygmunt Bauman é um dos sociólogos mais aclamados da atualidade. Suas críticas e seus livros rendem milhares de reflexões acerca da condição humana na pós-modernidade. Qual é o ponto essencial disso tudo? Há um ponto essencial? Por que Zygmunt Bauman é tão importante para nossa época?

A importância de Bauman vai além de suas aparições na mídia nos últimos anos. Zygmunt Bauman é autor de diversos livros que tentam interpretar o momento cultural e a estrutura social que vivemos atualmente. Declaradamente um crítico da pós-modernidade, os livros de Bauman ultrapassam as esperanças com o presente e fazem dele um campo de lutas mais invisíveis. Lutas e coerções que acabam parecendo liberdade, que parecem livre-escolha.

Bauman nasceu na Polônia em 1925 e foi professor na Universidade de Varsóvia. Antes disso, havia fugido do nazismo na Segunda Guerra Mundial, quando se mudou para a URSS. Quando voltou para seu país de origem, o autor foi perseguido pelo antissemitismo local, teve artigos censurados, foi expulso de seu cargo e encontrou um novo lar na Universidade de Leeds, na Inglaterra, onde comandou o departamento de sociologia da instituição.

A importância de Bauman está na interpretação da fluidez dos tempos pós-modernos. Bauman é duro neste aspecto, declara-se um sociólogo crítico e recusa o rótulo de “pós-modernista”. Para ele, “pós-modernista” é aquele que reproduz a ideologia do pós-modernismo, que se recusa a qualquer tipo de debate, que relativiza a vida ao máximo e que, dentro dessa super relativização, não consegue estabelecer críticas e nem formar regras para guiar a sociedade. Pós-modernista é aquele que foi construído dentro de uma condição pós-moderna, ele a reproduz e é constituído por ela. É seu arauto, seu representante inconsciente e é este posto que Bauman rejeita e nega fielmente.

A posição do autor é de crítica às relações sociais atuais. Trata-se de começar com uma categorização nova: modernidade líquida e modernidade sólida. Uma que representa o novo mundo, a pós-modernidade, e o outro que define a modernidade, a sociedade industrial, a sociedade da guerra-fria. Não é difícil de conseguir perceber a relação direta entre a “solidez” das relações da guerra-fria, com dois núcleos de produção dos julgamentos corretos (o capitalista, representado pelos EUA e o comunista, representado pela URSS), com duas opção distintas e antagônicas para serem “escolhidas”, ao contrário do pós-guerra fria, após a queda do Muro de Berlim e com a dissolução de qualquer centro de emissão moral, com a primazia do consumo em detrimento de qualquer ética da parcimônia etc. etc.

A sociedade líquida é a sociedade das relações fluidas, das relações frágeis, é a sociedade em que a fixidez de uma amizade em que ambas as partes matariam e morreriam pela outra já não existe mais. Não se trata mais de uma sociedade em que os indivíduos sabem o seu destino desde o nascimento, agora estamos imersos em um espaço social onde - teoricamente - escolhemos nosso futuro, optamos pelo nosso destino, somos responsáveis pelo nosso fracasso. Não é mais necessário ser asiático para ser um legítimo budista, basta comprar os livros certos e assistir às aulas certas. Ninguém é, e sim está.

Em primeiro momento pode-se pensar que a condição pós-moderna é uma condição de liberdade, mas é aí que podemos ver a camisa de força escondida.

O hedonismo pós-moderno, fantasiado de livre-escolha, de “se não gostar do programa, então desligue a televisão”, em que parecemos ser reis de tudo aquilo que chega até nós, é, primeiramente, uma condenação da sociedade. Construímos uma sociedade onde o mal-estar se agravou e se delineou em novas importantes categorias psiquiátricas, como a síndrome do pânico e a depressão. É nesta sociedade onde as pessoas não conseguem desenvolver ferramentas de socialização eficientes o bastante para uma conversa em um bar. É aqui onde começar uma amizade virtual, até mesmo ter um “amor virtual”, se torna algo fácil e plausível. Nós não nos relacionamos, mas nos conectamos, não pela facilidade da conexão, mas pela facilidade da desconexão. Nos conectamos porque a relação não tem mais a mesma consistência, agora é frágil como uma conexão, e quando não temos qualidade, investimos na quantidade. Aqui o mito da sexualidade libertada é contestada pelo autor. Só há uma nova forma de aprisionamento, uma nova delimitação das relações amorosas, uma nova configuração das maneira de amar.

Sob um ponto de vista macro, Bauman revela que o capitalismo atual não tem mais um grande banco de trabalhadores reservas, mas tem dispositivos de armazenamento e de exclusão mais eficientes. As prisões, ao contrário daquilo que foi dito por Foucault, não é mais o lugar da disciplina, mas é o da vigilância e exclusão total. O preso é um sujeito vigiado e armazenado, mas não para ser disciplinado, ele não é mais útil e nem pode ser. É uma vida desperdiçada, é um lixo humano.

Mas não são somente nas prisões que nós encontramos aqueles que precisam ser eliminados: eles também estão nas favelas e nas ruas, são os desempregados crônicos, aqueles que foram expulsos da esfera do trabalho por estarem “desatualizados”, ou que não têm mais para onde ir, pois não podem mais seguir o fluxo de imigração para países de exploração de mão de obra estrangeira. São os mendigos, os loucos, os pobres, os drogados, aqueles que fogem do padrão da sexualidade, são todos os que estão fora da construção da ordem, são os que realizam o contrário, que desfazem a ordem, que dão indícios de que ela pode ser quebrada ou de que ela não é absoluta.

Mas há uma nova forma de exclusão, a forma que advém particularmente da globalização: a exclusão do não-consumidor. Aquele que não consome já não é parte do esforço de construção da ordem, já que a ordem tem lugar cativo para os grandes consumidores, para os gastadores compulsivos e para aqueles que querer “exercer sua liberdade” por meio do consumo de serviços e produtos que demonstrem suas escolhas em todas as esferas da vida. Os que não consomem não podem ficar no espaço social.

Um exemplo pode ser visto na própria arquitetura das cidades. Para Bauman, as cidades são projetadas para serem o antro da diversidade, mas, ao mesmo tempo, um dispositivo de exclusão eficiente: os ferros pontiagudos que são colocados em frente aos prédios de grandes corporações são um exemplo de tática de exclusão, evitando que mendigos fiquem nestes lugares.

O não-consumidor é o novo estranho, o ambivalente, aquele que não pode ser localizado em nosso mapa cognitivo, que, na verdade, atrapalha seu funcionamento, que mostra suas condições errantes, sua incapacidade de abarcar o todo. Esses estranhos são absorvidos e “domesticados”, ou completamente eliminados. O novo racismo não é o da caça e da morte do estranho, mas é o da separação e da “culturalização” da essência.

Agora não se trata de uma essência biológica, mas de uma essência cultural. Os novos racistas imputam uma cultura fixa a cada grupo específico e promovem a separação total destas, as hierarquizam de maneira que o branco “tem a cultura superior”. Bauman diz que a tática de absorver e domesticar não é menos autoritária que a prática dos regimes totalitários de morte e exclusão. Para ele, a destruição daquilo que é a identidade do sujeito é um movimento autoritário e forçoso de eliminação do sujeito. Como não se pode mais matar, então é necessário ter ambientes certos para a absorvê-lo e reeducá-lo, como a escola, a igreja, ou as prisões e as favelas. É necessário normatizar o estranho.

Em nossa época, o medo se espalha como uma malha infinita. Os meios de comunicação tem um papel privilegiado, pois transmitem os objetos do medo de forma mais rápida e brusca que o próprio objeto poderia se transmitir, vide a Al-Qaeda após o 11 de setembro. É na televisão onde os programas telejornalísticos banalizam os medos e, ao mesmo tempo, fazem vibrar o alarme da “violência local” e da “violência global”.

O controle dos medos também é um assunto em pauta. Bauman diz que uma das formas de exercer o poder eficientemente é controlando as incertezas. O grupo que controla as incertezas, que detém o controle da decisão e que, por sua vez, prevê todos os movimento sem ser previsto por nenhum outro grupo, este grupo consegue, também, decidir em quais momentos a sociedade deve ter medo (como nos Estados de Sítio eternos) e quando deve ficar calma e pacífica, como nas tentativas neoliberais de acalmar a tensão entre os miseráveis garantindo que poderão ascender na hierarquia social, desde que trabalhem o bastante para isso.

Basicamente, Bauman diz que a sociedade atual não garante a manutenção do sujeito em sua posição social, não garante seu sustento e também não garante sua integridade física. Vivemos em uma sociedade onde ontem estávamos no topo na hierarquia, mas hoje estamos de volta à base; onde ontem tínhamos empregos, mas hoje podemos não ter mais (e é normal não ficarmos no mesmo); e onde as tecnologias de proteção individual e vigilância aumentam em disparada.

A importância de Bauman e de outros intelectuais que renovaram a crítica à contemporaneidade é de poder entender de maneira nova e atualizada a dinâmica da sociedade atual. Bauman trata de temas mais ou menos globais e coletivos, que se expressam também na vida individual. Não se trata só de falar sobre as “relações frágeis”, mas de entender que elas não são assim “do nada”, de repente, mas que são fruto de uma época, de um dado momento histórico.

Ninguém está fora desta fragilidade. Não é uma questão de escolha ou de autopoliciamento. Bauman diz isso bem ao fazer a distinção entre segurança e proteção. Para Bauman, segurança é aquilo que constitui o sujeito, a segurança (e a insegurança) são inscritas no sujeito em toda sua socialização. É algo que forma o sujeito. Isso significa que a segurança tem a ver com algo que nós não escolhemos, mas que é a base para nós escolhermos outras coisas. Somos inseguros quando checamos o celular de nossos parceiros para saber se estão nos traindo. Já a proteção tem a ver com aquilo que você compra ou acumula para guardar a integridade física. Proteção são câmaras, coletes à prova de balas, bunkers etc. etc.

O autor deixa claro que não se resolve problemas globais com soluções locais. Isso também pode ser entendido como um aviso de que não se resolve a insegurança individualmente, mas sim, coletivamente e globalmente. A futilidade, o consumismo e a incerteza são constitutivos e devem ser combatidos sabendo que eles fazem parte de nós, não tentando nos afastar deles, em busca de uma salvação individual.




Vinícius Siqueira






Fonte do Texto e da Gravura: OBVIOUS
www.obviousmag.org